A MORTE DE NANDÓ COMO AVISO ÀQUELES QUE DESEJAM ALCANÇAR O CADEIRÃO MÁXIMO DO MPLA

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“Entre o silêncio que se impõe e as honras que se decretam, a História recorda-nos que algumas mortes não encerram trajetórias encerram possibilidades.”

A morte súbita de Fernando da Piedade Dias dos Santos, “Nandó”, ocorre num momento político demasiado sensível para ser entendida apenas à luz de um diagnóstico médico. Os dados preliminares da autópsia apontam para hidrocefalia, associada à desidratação após permanência numa sauna, mas a explicação clínica não esgota o significado político do acontecimento. Pelo contrário, a coincidência temporal levanta perguntas legítimas: Nandó encontrava-se em fase avançada de preparação para anunciar publicamente a sua candidatura à liderança do MPLA, após reuniões estratégicas, pressões internas e sinais claros de mobilização. A morte acontece exatamente quando a palavra estava prestes a ser dita. Por que razão o tempo se fecha neste instante preciso? Por que a rapidez em decretar luto nacional, montar exéquias de Estado e encerrar o assunto com solenidade institucional? Hannah Arendt recordava que o poder verdadeiro teme mais a ação livre do que a oposição declarada; será que aqui se temeu exatamente a ação que ainda não tinha ocorrido?

Para compreender a densidade deste momento, é inevitável regressar à História e revisitar o caso do general Erwin Rommel. Rommel não morreu por traição comprovada, mas porque, na lógica de Adolf Hitler, se tornara grande demais para continuar vivo. Era carismático, estratega brilhante, respeitado pelos soldados e admirado pela população. Não conspirava abertamente, mas possuía autonomia moral e defendia o fim da guerra. Após o atentado de 20 de julho de 1944, Hitler passou a vê-lo como ameaça não pelo que fazia, mas pelo que poderia representar. A solução foi fria: escolher entre o suicídio “honroso”, com funeral de Estado e proteção da família, ou a desonra pública como traidor. Rommel morreu; o regime preservou-se. Nicolau Maquiavel já advertia que os príncipes temem mais aqueles que podem tornar-se alternativa do que os inimigos declarados. Não é este o mesmo medo que atravessa regimes de diferentes épocas?

É neste espelho histórico que a figura de Nandó ganha contornos mais nítidos. Tal como Rommel, não era opositor externo nem revolucionário de rutura. Era homem do sistema, com história, legitimidade, aceitação transversal e capital político próprio. Representava a possibilidade de mudança sem confronto, de reforma interna sem implosão. Para Max Weber, a legitimidade carismática é sempre perigosa para o poder burocrático, porque não depende das regras depende da confiança. Nandó construía pontes, dialogava, gerava estabilidade. Paradoxalmente, foi isso que o colocou numa zona de risco. Quando o poder não consegue derrotar uma alternativa no plano político, tende a neutralizá-la antes que se materialize. É a velha parábola do jardineiro que arranca a árvore jovem não porque ela já faz sombra, mas porque um dia poderá fazê-la.

As palavras do Presidente João Lourenço, proferidas no 69.º aniversário do MPLA, ganham aqui um peso estrutural. Ao afirmar que aqueles que pretendem substituí-lo “já estão mais cansados do que ele próprio” e que as cartas seriam colocadas de lado, traçou-se um limite claro. Esse discurso exigia coerência com a realidade. Como sustentar a narrativa de vigor perante um candidato respeitado, ativo e longe do desgaste político? Michel Foucault ensinou que o poder não se exerce apenas pela repressão, mas pela produção de discursos que moldam o real. Quando a realidade ameaça o discurso, muitas vezes é a realidade que acaba por ser silenciada. Não se eliminam apenas pessoas eliminam-se contradições.

A metáfora bíblica de Golias e David ajuda a compreender a dimensão simbólica do episódio. Nandó era o Golias o gigante confiante dentro do exército dos filisteus, aqui simbolizando o MPLA. Um homem em quem o próprio exército confiava. Mas o golpe não veio do confronto direto; veio do inesperado, silencioso e cirúrgico. David representa os mecanismos internos do poder capazes de derrubar gigantes sem batalha aberta. A queda de Golias não destrói apenas o homem, mas desmoraliza todo o exército. É a parábola do pastor que perde o carneiro mais forte para ensinar o rebanho a não sair do cercado. A morte de Nandó fecha o ciclo da esperança de reforma interna e envia uma mensagem clara: mudar por dentro é atravessar terreno proibido.

O cenário torna-se ainda mais perturbador quando se recorda a tragédia dos seis filhos de António Venâncio, falecidos simultaneamente num período em que o pai era também apontado como pré-candidato à liderança do MPLA. Não se trata de afirmar factos judiciais inexistentes, mas de reconhecer a perceção social que se instala quando tragédias desta natureza coincidem repetidamente com momentos de ambição política reformista. Pierre Bourdieu falava do “poder simbólico” como aquele que se exerce sem precisar ser nomeado. A ausência de explicações oficiais transforma-se, assim, numa mensagem silenciosa, pedagógica, profundamente eficaz. O medo não precisa de autoria explícita para cumprir a sua função.

É neste ambiente que ganham peso as declarações feitas na Rádio Essencial, quando Tito Kambaje, membro do MPLA, advertiu publicamente Valdir Cónego, também militante e aspirante ao congresso, afirmando que todos aqueles que tentaram mudar o sistema foram apagados. Não foi um sussurro, foi um aviso em voz alta. Quando esse tipo de alerta surge de dentro do próprio partido no poder, deixa de ser retórica e passa a ser diagnóstico. Zygmunt Bauman recordava que sociedades dominadas pelo medo aprendem a obedecer antes mesmo de serem coagidas. O aviso cumpre essa função: educa pelo exemplo.

Neste contexto, ganha força a leitura política de que Higino Carneiro deve proteger-se, não por paranoia, mas como reflexo de um ambiente fechado, ranhoso e intolerante à dissidência interna. A morte de Nandó ultrapassa o drama pessoal e transforma-se num marco simbólico: um aviso máximo para todos os que pretendem reformar o sistema a partir de dentro. Como na parábola do viajante que vê ossos à beira da estrada e entende a mensagem sem precisar de palavras, o recado é claro. A pergunta final impõe-se, sobretudo à juventude angolana: quantos Rommels e quantos Nandós ainda serão necessários para que se compreenda que eliminar alternativas não constrói futuro apenas prolonga o medo? A História mostra que regimes podem sobreviver ao silenciamento dos homens, mas raramente sobrevivem ao silenciamento das ideias.

Henda Ya Xiyetu

Criador de Opinião | Opinion Maker | Créateur d’Opinion .

“As opiniões expressas são pessoais e visam provocar reflexão crítica e construtiva sobre temas que impactam nossa sociedade.“

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