ESTADO VERSUS FAMÍLIA: JOGOS DE PODER – MANUEL MARQUES CARLOS

Mesmo que na maior parte da história da família o Estado tenha chamado para si a custódia das relações conjugais e parentais, a autoridade estatal nunca esteve imune à influência vital da família, tendo em conta que é esta quem sempre proveu a força de trabalho que alimenta as instituições ao longo de toda a história da máquina estatal.
No entanto, ao implementar todo um pacote de medidas macroeconómicas que afectam positiva ou negativamente os preços, a tributação, os empregos, os juros e a renda, o estado dita o curso das familias, impõe o tipo de alimento que chega às suas mesas e determina a qualidade do lugar que estas chamam de lar.
Ainda com base nos seus fins políticos, económicos, militares e sociais, o estado expande a sua presença nos territórios da familia através de leis que regulamentam o casamento, o divórcio, a filiação, o aborto, a contracepção, a herança e o género.
Para além desta participação directa nos assuntos familiares, que afecta de forma significativa a autoridade parental e a solidez dos laços matrimoniais, o estado também imprime a sua força através de leis que regulam o comportamento de forma mais ampla, bem como por meio de uma gama de serviços essenciais que presta às famílias, tais como educação, saúde, segurança e assistência social.
Historicamente, a intrusão do estado nos domínios da família sempre foi poderosa e incontornável, sobretudo em certos contextos, quando se sentiu forçado disputar com no núcleo familiar a lealdade dos cidadãos, ou quando viu a necessidade de fazer um controlo demográfico mais cerrado.
Alguns dos exemplos críticos da regulamentação estatal da vida familiar incluem a proibição do casamento inter-racial, obstrução do divórcio e a política do filho único.
Nos dias actuais, marcados por uma política familiar “progressista, ” os exemplos mais marcantes incluem a liberalização do aborto e a validação do casamento entre pessoas do mesmo sexo – um modelo que contrasta com o sistema familiar tradicional, o único que garante a manutenção da espécie que, no entanto, vem sendo ameaçado pela força dos valores liberais da sociedade contemporânea.
A família ainda oferece à sociedade o marginal que perturba a paz e a segurança pública. Este fora-da-lei é geralmente resultado de alguma disfunção familiar, associada a determinadas variáveis sociais, que surgem como consequência, em maior ou em menor grau, do fracasso das políticas públicas ou da ausência da intervenção estatal.
Aqui, o Estado traduz-se especificamente no amplo leque de estruturas político-administrativas que têm como vocação tutelar a paz, o progresso e a harmonia social.
Quanto ao político que dissemos por trás, a questão que deve ser feita é sobre quem o forja: a família ou a sociedade?
Digamos que a família, através da autoridade parental, forma a pessoa – com certos anseios elementares e um código moral básico. E a sociedade, que é uma outra faceta do Estado, com todo o seu arsenal de instituições, nomeadamente escolas, universidades, sindicatos, partidos políticos, parlamento, tribunais, presidência da república e a mídia (o porta-bandeira do debate político), é que fazem de facto o presidente, os deputados, os ministros e todos os outros burocratas estatais de alto, médio e baixo escalão, que asseguram a manutenção da ordem social.
E mesmo no que diz respeito ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo, a família não faz todo o trabalho. Ela desenvolve os padrões fundamentais de pensamento e de comportamento, e o resto acontece na sociedade, com o aprendizado social.
Assim, o indivíduo desenvolve na família a parte mais primária da personalidade os moldes básicos do seu pensar e agir, que o torna uma pessoa boa ou má – padrões que, no entanto, podem ser subvertidos ou reforçados na sociedade ao longo do tempo. E políticos, as pessoas se tornam na sociedade, fruto da experiência social.
Portanto, extrema direita, direita, esquerda e todos os outros conceitos da política que fazem o político, não se aprendem na família, mas na sociedade e mais uma vez, com a sociedade. E, dadas as agendas que perseguem, as instituições da sociedade, carregam toda uma cultura institucional, diante da qual, muitos dos traços de personalidade que o indivíduo herda da família não sobrevivem.
Tomemos, por exemplo, as instituições militares que, historicamente, têm toda uma tradição de disciplina, severidade e rigidez, que, independentemente da força dos valores queo indivíduo traz de casa, ele é forçado a adaptar – se.
O mesmo se pode dizer das instituições académicas, que têm toda uma identidade muito própria, distinta do modus operandi da família, o que nos permite afirmar em viva voz que o meio familiar constrói a pessoa (o músculo), mas o cientista, o pesquisador e o professor-os cérebros – por assim dizer, são forjados pela sociedade, que como dissemos, é uma outra versão do Estado.
Contudo, esta influência de longo alcance que o aparelho estatal joga sobre o indivíduo, não diminui a força e a importância da estrutura familiar, até porque a existência da família precede o estado, e ela pode existir sem ele, o que não pode ser dito inversamente.
Assim, em retrospectiva, se considerarmos que a sociedade são todas as pessoas e instituições que estão depois dos muros que cercam a família, pode-se dizer então que esta estrutura cognitiva complexa a que chamamos personalidade é resultado (paralelamente a influência genética), da cooperação entre família e ambiente, já que, de um lado, a máquina familiar constrói a parte essencial do ser; e de outro, o mundo ao redor se encarrega de acrescentar, mudar e reforçar certos traços a este ser, além de construir as suas dimensões cívica e profissional, bem como atribuir as devidas recompensas as escolhas que o indivíduo faz ao longo desta construção.