PARA QUE NÃO DIGAM QUE NÃO FALEI DE FLORES – FERNANDO PACHECO

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Escrevi há alguns meses uma crónica onde mencionei o crescente peso político da agricultura em Angola. Isso se deve à combinação de três factores principais: as dificuldades financeiras causadas pelo preço do petróleo e pela carga da dívida pública; a sensibilidade do Presidente João Lourenço em relação ao sector; e a influência da AAPA – Associação Agro-pecuária de Angola na formulação de políticas públicas junto ao Executivo, destacando-se pelo seu papel crucial na promoção da agricultura como nenhuma outra organização de agricultores o havia feito até a ascensão da actual direcção.

Alguns poucos colegas do Ministério da Agricultura e Florestas (MINAGRIF), infelizmente, não entenderam correctamente minhas palavras, interpretando-as como uma tentativa de diminuir o papel da instituição em relação à associação empresarial. No entanto, uma coisa não exclui a outra. O peso político do sector é determinado pela importância que o Executivo, as instituições públicas, a mídia e a sociedade em geral lhe conferem.

Durante muitos anos, nós, profissionais do sector agrícola, criticamos o desinteresse com que o sector era tratado, resultado da falta de visão, sensibilidade e conhecimento de muitos governantes, além de métodos de trabalho ultrapassados que dificultaram a integração e coordenação das acções governamentais para eficácia e eficiência dos planos, programas e projectos. Como parte integrante do Executivo, é inimaginável que o MINAGRIF não esteja alinhado com essa abordagem, sendo mais pertinente recomendar um diálogo mais intenso com os diversos atores.

Como resultado do crescente peso político do sector, o Executivo tem adoptado medidas sem precedentes, como a aprovação do Programa de Aceleração da Agricultura Familiar e Reforço da Segurança Alimentar, o aumento dos fundos alocados pelo OGE para o sector e as medidas preparatórias para a campanha agrícola.

Embora sejam medidas importantes e sem precedentes, ainda há deficiências perceptíveis, como a falta de uma visão estratégica clara, a natureza errática e as incoerências táticas das decisões, como destaquei na conversa de Maio, especialmente devido às persistentes e preocupantes fragilidades institucionais. Uma dessas fragilidades diz respeito à forma como as instituições lidam com os diversos atores não estatais, sejam do sector privado e das associações empresariais, do mundo informal da agricultura familiar ou das organizações não governamentais, o que não favorece a estruturação do negócio agrícola, impede a criação e o aproveitamento de sinergias e, de fato, prejudica os interesses desses atores.

Um exemplo concreto é a situação actual com a importação de quantidades significativas de milho exactamente quando a campanha de comercialização desse cereal está começando, o que afecta imediatamente o preço de venda dos agricultores devido ao aumento da oferta no mercado.

Situação semelhante ocorreu meses antes, quando os preços eram favoráveis aos agricultores que haviam armazenado o produto, geralmente em condições difíceis. Com essas medidas de dumping, possivelmente influenciadas por tentativas frustradas de controlar a inflação, o Executivo acaba criando outros problemas que prejudicam agricultores e operadores comerciais envolvidos na compra, armazenamento e distribuição de produtos agrícolas, minando a frágil confiança que foi construída com tanto esforço ao longo dos anos.

Durante minhas viagens pelas províncias do Cuanza Sul, Huambo, Bié e Huíla, interagindo com agricultores e operadores comerciais atuantes em vários municípios, pude confirmar algo que tenho defendido há muito tempo: existe uma Angola que funciona também para esses atores da agricultura familiar, que finalmente começam a ser reconhecidos por seu papel real na economia, superando progressivamente o preconceito com que são vistos. Conheci pessoas em certos municípios da Huíla e do Huambo que fazem sacrifícios enormes para pagar os estudos de seus filhos nas cidades, seja no Lubango ou mesmo em Portugal, apesar das dificuldades causadas pelos problemas estruturais de nossa economia e governança.

Soube também que muitos dos jovens que estudaram ou estão estudando em Portugal decidiram não retornar a Angola. Enquanto ouvia a história de um jovem que iniciou sua carreira numa ONG e gradualmente se tornou um empresário que assiste centenas de agricultores através de contratos, papel reconhecido pelo FADA – que, décadas após sua criação, finalmente assume seu papel de promotor e financiador da agricultura familiar, apesar das limitações ainda presentes -, surgiu um suspiro desejando que houvesse mil jovens angolanos semelhantes. Uma voz afirmou que eles existem, mas são impedidos de brilhar pelo governo autoritário e pela sociedade desinformada.

Citando novamente meu amigo Henriques Chimbili, um agricultor familiar da Cáala, nossa desventura é não termos a sorte, o que, em minha opinião, se aplica ao azar de não termos políticos e governantes que vejam os camponeses angolanos – mesmo aqueles que vivem nos subúrbios desumanos das cidades – como cidadãos com direitos garantidos pela Constituição, e não como os colonizadores viam os indígenas durante quase meio século, até que, com as revoltas de 1961, eles conquistaram o título de cidadãos, embora com limitações significativas de direitos.

Na realidade, as comunidades rurais vivem sem identidade, serviços sociais básicos ou com serviços extremamente precários, sem acesso regular a serviços comerciais, água potável, saneamento, energia elétrica, transporte público (substituído por “kaleluias” que, apesar de desconfortáveis e perigosas, são quase a única opção de mobilidade ao seu alcance). Sua existência é reconhecida apenas pela utilidade para o poder, como ocorre em momentos eleitorais, explicando o desinteresse na institucionalização das autarquias, que poderiam representar algum nível de autonomia para as comunidades e uma redução do controle exercido pelos aparelhos estatais.

É por isso que persistem as práticas de “ofertas” de bens materiais em ocasiões especiais, como eleições e visitas de figuras públicas, pois acredita-se que a gratidão gera dependência e dificulta ou impede a reivindicação. Para nossa vergonha, Manuel Vinhas, proprietário da Cuca, e outros poucos empresários portugueses cobravam taxas simbólicas por refeições nos refeitórios de suas fábricas. Argumentavam que dessa forma os trabalhadores teriam o direito de reclamar por melhores condições.

Fernando Pacheco, Novo Jornal, 21-6-24.

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